Café amargo, com um leve e suave gosto de sangue.

quarta-feira, agosto 6 6:58 PM postado por debs


O café estava amargo como sempre. Perfeito. Era exatamente assim que Amélia gostava. Ou talvez apenas tivesse se acostumado tanto, que de outro jeito lhe parecia insuportável. Mas enfim, era só ela e o café. Amélia, café e a penumbra que se formava abaxio da janela por onde entrava a luz do poste da rua. Nada de Fabrício ou Sandra ou Juca ou Mara, seus quatro filhos que quase nunca estavam presentes. Que quase nunca demonstravam se importarem com o bem-estar da mãe. Em qualquer lugar, por mais diferentes que sejam esses tais lugares, seria comum acontrá-los, menos em casa. Lá era pouqíssimo provável, porque só iam para dormir.
O marido já tinha partido dessa pra uma melhor. Morrera assassinado por um ladrão em fuga, que usara-o como refém. Para ela, sinceramente!, não fazia diferença. Joaquim, o falecido, era tão ausente quanto agressivo. Só fazia reclamar da casa bagunçada (aos seus olhos), do almoço demorado, da recuperação dos filhos na escola (e é que não lhes dava exemplo algum), etc. Tratava a esposa como uma empregada, qua além de cuidar da casa também trabalhava fora. E não dava-lhe amor. A mulher cansara disso. Odiava acordar cedo para um dia difícil e dar de cara com aquela parasita dormindo do lado, na parte esquerda da cama. E jurava que se Joaquim não tivessi sido vítima do destino, teria, ela mesma, matado-o.
Com tantas tentativas frustradas de mudar a vida, Amélia tomou uma decisão quase que impensada. Talvez por que estava desesperada com a morbidez da solidão que lhe fazia companhia, e o desespero, meus caros amigos, é o sentimento e o estado passageiro que nos faz tomar dicisões do jeito mais imaturo e inapropriado possível.
Em sua juventude, a moça sempre sentia-se deslumbrada por sangue, suicídio, assassinato, tortura, essas coisas. Isso a fazia ter tantas idéias sinistras. Era como se sangue fosse o combustível da vida humana e animal. Algo inteiramente misterioso.E foi com essa lembrança radical que Amélia resolve ter, enfim, uma reação a tudo aquilo. Tomar uma atitude, e tomou.
Na semana seguinte, quando Fabrício chegava em casa, sentiu o choque da surpresa ao olhar a notícia principal e meio macabra do jornal daquela manhã, que encontrara à frente da porta.

“O sangue desfazia o estado incolor da água”
Amélia Moura, 42, farmacêutica, foi encontrada morta na tarde da última quarta-feira em um açude próximo à capital. A polícia identificou o caso como suicídio. Boiando, ela apresentava o corpo quase que completamente mutilado, com pequenos orgãos externos faltando, como dedos da mão esquerda, lábios, orelhas. O suicídio ocorreu ha dois dias, mas ninguém ainda descobrio o que a levou a praticá-lo”

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